Frigorífico, armário, as compras
em prateleiras e gavetas guardadas, estende-se à mala as roupas molhadas, na
máquina são lavadas e outras peças já usadas. Detergente adicionado, botão
ligado, o tambor roda na lavagem programada. São horas da refeição tomar. Liga
a televisão para a acompanhar, comenta sozinha o que está a dar. Fala,
argumenta; canta.
São as banalidades da vida de
todos os dias, dos acontecimentos distantes, os que não fazem parte da sua
vida. Entristece-se ao ouvir e ver, enche o peito de ar para evitar o choro, a
mágoa de em austero mundo viver. Questiona os princípios regentes da acção
humana para tanta desgraça produzirem sem a poder transformar. Não há sua
imagem, não segundo a sua idealização, mas justa e humanizada. Civilização
atroz, pensa, que por um punhado de bens essências se mata, destrói, impõem e
submete seus iguais. Conhecimento ilusório diminui a liberdade de ser quem és,
de viveres o que melhor a vida tem para te oferecer.
Escolas infinitas delimitam o
pensar, o agir; inquestionável ordem instituída. Perpetua reprodução, selvática
pois então, da lei animal num ser superior investido de capacidades que os
demais, igualado e superando em bestialidade os outros animais. A lógica dos
interesses, a lógica da desconfiança, a lógica da lei da força implanta a
desgraça, a diferença, dividindo, separando…
Não compreendo porque Soraia
pensa assim. De que se queixa ela. Não trabalha, cuida da casa e do filho por
opção. O marido trabalha e os negócios proporcionam-lhe uma vida plena sem
preocupações. Tem o que necessita. Tem mais do que precisa, é verdade ela
partilha. Mas porque se martiriza com a desgraça alheia? Responsável pelo mal
do mundo e da sua sociedade que desmorona a cada dia que passa. Exigências
antagónicas não cumpridas, apenas expressas nas belas palavras do discurso da
lei proclamados. Não verte lágrimas, num pranto desconsolado o coração partido
pelos maus tratos a que estamos todos submetidos.
As empresas do marido e restantes
negócios são trabalhados na justiça. Os salários pagos, as rendas exigidas, não
são definidas por qualquer mercado. Definem-se pelo cuidar, o dar e o amar.
Perguntam-se se têm lucro? Têm o lucro necessário para investir e partilhar os
ganhos alcançados pelos que dão o seu tempo e empenho.
Arruma a loiça combalida pelos
textos e imagens assistidos. Troca de roupa, calças de ganga, camisola de lã,
botas e casaco de pele para o passeio da tarde dar. O filho surge na sua
memória a sorrir, feliz por estar a brincar. Apaziguado o coração surge nova
emoção insaciável por algo desconhecido. Sai de casa.
Na rua encontra o vizinho que de
sorriso aberto lhe diz:
- Olá como estás?
-Bem obrigado.