Soraia descalça sente o frio da madeira soalheira. A manhã
desperta-a num sorriso rasgado. O que terá sonhado…
De olhos fechados à beira da cama, inebriada pelo sol quente
trespassando o vidro, liberta a alegria resplandecente da juventude perdida.
Certezas, são apenas duas ao longo do dia. Desejos, ambições ocultas em si, no
âmago do ser, provocam, em vão, o romper das escamas polidas na existência efémera.
Sabe o descontentamento que a reina; sem coragem, a força de o salto dar para a
outra margem. Incomodada todos os dias, ansiosa por se ver, sentir, sem a imagem
refletida nas águas da vida.
Ergue-se em direção ao banho. Ergue-se esplendorosa, no
pijama de flanela com rosas embutidas. Ergue-se por não restar nada, sem nada
esperar ou esperando algo novo a experimentar. Ergue-se enfim, para a solidão
na multidão da casa vazia. Insaciável noção de ser paredes altas construídas,
arremessada vezes sem conta no jugo do pensamento, revisitada a cada momento
das decisões não esquecidas. Em si, subordinadamente, a água, anseia o toque
ameno e amoroso de alguém desconhecido, sem rosto, sem físico, sem alma.
Alma ousada, presa na certeza de mais um dia. A água
escorre, escorre da cabeça aos pés, sem saber a labareda queima-a perpetuando o
destino da felicidade assumida. Abraça-se… toca-se… estimula a carne
vegetativa. Razões descoloridas, sentimentos incompreendidos. De si, em si,
imagina a aventura de um novo amante, o qual jamais surgirá, apenas, por breves
segundos, uma mão e beijos trocados.
Lava-se o corpo, a mente, o espírito. Fica a sujidade
enraizada da vida. De toalha enrolada, cobre o corpo ensopado, a formosura no
espelho cravada, questiona como não é vista nem sentida por ninguém. Feliz
casamento este, feliz vida das necessidades não vividas. Infeliz interioridade
não partilhada.
Veste o fato de treino, prepara a mala, come uma sandes e
sai. A caminho do ginásio vai. A primeira certeza do seu dia.
É cedo, ainda. Não existe movimento significativo da vida na
cidade, a rua preenche-se com algumas pessoas a deslocarem-se para o trabalho
ou a deixarem as crianças na escola. Soraia caminha na expectativa do encontro,
da palavra trocada, a atenção tão desejada. O percurso minimalista, em reta
decalcado, a passo certo e largo, num ápice finalizado. Cruza a porta,
dirige-se ao balneário, a mente desligada. Em casa sinto-me amada, mas algo
está em falta, parece que o vazio se apodera de mim…
Troca amenas palavras, frases curtas de sorriso nos lábios.
Bom dia, como está. A resposta já antecipada, sem retorquir em silêncio caminha
para a máquina exercitar o físico bem delineado. Passa o tempo, passa a mágoa.
Duas horas desvairadas a correr, a remar, a pedalar. Ao balneário torna
fatigada. Despe o preconceito, lava o peito, fecha os olhos ao amassar o cabelo.
A toalha pendurada seca o corpo molhado. Veste-se com o fato de treino na
debandada. O sol espera amornar o seu coração.
De regresso a casa, dois são os encontros fortuitos sem
significado. Simbólica sorte não fecundada. Serpenteando o caminho, adiciona
nas mãos os mantimentos em falta, recheia a casa para as refeições não
cozinhadas. As portas abrem, fecham-se à sua passagem não totaliza a amarra
construída por si. As janelas entreabertas permitem o ar circular e a vida
desejada entrar. O burburinho exterior apazigua o interior, informa a vida
plena, coabitando a faminta vontade de mais alcançar. O quê…