sábado, 15 de dezembro de 2012

Ardente sufoco, que me queima e dilacera P.V




Uma hora depois de entrar, se sentar, levanta-se e aprecia a vista desafogada da janela para se apaziguar das emoções que percorrem o seu coração. À esquerda vê o maciço rochoso repleto de vegetação e arvoredo milenar, com firmamento azul vivo a guardar a sua opulência. No topo da colina o velho guardião dos mares e das terras que trilhamos. Lá no alto, eleva a sua fortaleza ancestral entrosada na instrução de espaços míticos capazes de nos fazer sonhar com outros tempos passados e possíveis de existirem ainda nos dias de hoje. À distância a que se encontra é suficiente para impor a magnificência da sua construção sobre a terra e espanto perante a construção ordenada do edifício com a natureza circundante, apaziguamento desmedido nos olhos ali repousados.
Do meio da janela para a direita, estende-se a raiz da serra desembocando no mar. A falésia ingreme, suspensa pelo areal da praia cristalino reluzente, irrompe mais à frente com a brutalidade cinzenta e verde salpicada de castanhos tórridos e esbatidos pelo tempo. As ondas propagam-se no ar com a certeza rítmica e cadenciada de quietude avassaladora para os mais agitados seres. O vai e vem das ondas, e a explosão no granito destacado da costa de duas pequenas ilhas, refúgio de aves, fazem esquecer a efusão de sentimentos gastos e repetidos. Surge assim a necessidade de dar as costas ao mundo e construir o seu próprio mundo.

Destemida prende o pincel e desenha seis linhas sem substância. A mão nervosa rabisca e sem questionar molha o objeto na tinta esborratando a tela. Com a convicção de quem sabe o que faz começa a pintar, a construir a sua, nossa alma e mundo. As cores vivas, sem escolha possível, aviva as emoções do seu cofre, e o calor, ardentemente gelado, das suas profundezas salta nos fluidos excretados pelo seu corpo.
Sem convicção do lugar onde se encontra sente, sente apenas o desejo do calor que brota de si para a tela. Sente Tobias em si, sente o calor, a serenidade, a paixão, a compreensão, o amor de todos os toques, de todos os olhares, de todas as presenças na sua vida. Ausente de si, toma consciência da aceleração cardíaca e da respiração ofegante na tela trabalhada. Tobias toma conta de Marta, rendida aos sentimentos que a inundam, sem se questionar, pinta, pinta, pinta… A excitação exponencial do seu ser, começa, por fim, a interferir no seu trabalho. Um rabisco mal feito, uma pincelada mal dada, no local errado, com a cor negra propicia a pausa, com duas horas de trabalho. Em si, sente remorsos, pelo prazer, a satisfação plena com Tobias na sua mente e coração.
“Não posso pensar nele. Não posso sentir seja o que for. Não é correto”, amarrada nestes delírios parte a lavar as mãos, no casaco pega, a bolsa agarra e sai. Sem explicações e compreensão dos sentimentos ou da ligação a Tobias, Marta experimenta a contradição avassaladora das enchentes vazantes do oceano. Incapaz de aceitar o que vive, caminha para a rejeição completa de si, sem viver a sua infinitude.
O dia apresentou-se prazeroso. O sol ilumina alto toda a existência material e imaterial. Bordado a nuvens suaves, pinceladas adelgaçadas borrifam o firmamento finito de cobre na intermitente rotação planetária. As ruas almejadas da algazarra taciturna numa ordem escanzelada, palpitam de vegetação verde e flores violetas, amarelas, brancas e lilases em retângulos regulares, desconstruídos pela exuberância das cores cultivadas e tratadas por quem sabe. Em sentido, Marta olha o céu, enclaustra os olhos permitindo-se apanhar os raios solares, as cores, a vida contígua ao seu ser. Sente, neste ato, a libertação enclausurada dos afetos majestosos que sufocam a eternidade dos seus dias.
Assombra-lhe a tristeza de não ter solução; e ignorando a verdadeira libertação, sem julgamento possível da razão indolente de quem foi educado para agir de coração aberto pela aceitação dos de mais, desposando de si e da sua paixão interior por si e da carência real de provisão de seus afetos.

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