Uma hora depois de entrar, se
sentar, levanta-se e aprecia a vista desafogada da janela para se apaziguar das
emoções que percorrem o seu coração. À esquerda vê o maciço rochoso repleto de
vegetação e arvoredo milenar, com firmamento azul vivo a guardar a sua
opulência. No topo da colina o velho guardião dos mares e das terras que
trilhamos. Lá no alto, eleva a sua fortaleza ancestral entrosada na instrução
de espaços míticos capazes de nos fazer sonhar com outros tempos passados e
possíveis de existirem ainda nos dias de hoje. À distância a que se encontra é
suficiente para impor a magnificência da sua construção sobre a terra e espanto
perante a construção ordenada do edifício com a natureza circundante,
apaziguamento desmedido nos olhos ali repousados.
Do meio da janela para a direita,
estende-se a raiz da serra desembocando no mar. A falésia ingreme, suspensa
pelo areal da praia cristalino reluzente, irrompe mais à frente com a
brutalidade cinzenta e verde salpicada de castanhos tórridos e esbatidos pelo
tempo. As ondas propagam-se no ar com a certeza rítmica e cadenciada de
quietude avassaladora para os mais agitados seres. O vai e vem das ondas, e a
explosão no granito destacado da costa de duas pequenas ilhas, refúgio de aves,
fazem esquecer a efusão de sentimentos gastos e repetidos. Surge assim a
necessidade de dar as costas ao mundo e construir o seu próprio mundo.
Destemida prende o pincel e desenha
seis linhas sem substância. A mão nervosa rabisca e sem questionar molha o
objeto na tinta esborratando a tela. Com a convicção de quem sabe o que faz
começa a pintar, a construir a sua, nossa alma e mundo. As cores vivas, sem
escolha possível, aviva as emoções do seu cofre, e o calor, ardentemente
gelado, das suas profundezas salta nos fluidos excretados pelo seu corpo.
Sem convicção do lugar onde se
encontra sente, sente apenas o desejo do calor que brota de si para a tela.
Sente Tobias em si, sente o calor, a serenidade, a paixão, a compreensão, o
amor de todos os toques, de todos os olhares, de todas as presenças na sua
vida. Ausente de si, toma consciência da aceleração cardíaca e da respiração ofegante
na tela trabalhada. Tobias toma conta de Marta, rendida aos sentimentos que a
inundam, sem se questionar, pinta, pinta, pinta… A excitação exponencial do seu
ser, começa, por fim, a interferir no seu trabalho. Um rabisco mal feito, uma
pincelada mal dada, no local errado, com a cor negra propicia a pausa, com duas
horas de trabalho. Em si, sente remorsos, pelo prazer, a satisfação plena com
Tobias na sua mente e coração.
“Não posso pensar nele. Não posso
sentir seja o que for. Não é correto”, amarrada nestes delírios parte a lavar
as mãos, no casaco pega, a bolsa agarra e sai. Sem explicações e compreensão
dos sentimentos ou da ligação a Tobias, Marta experimenta a contradição
avassaladora das enchentes vazantes do oceano. Incapaz de aceitar o que vive,
caminha para a rejeição completa de si, sem viver a sua infinitude.
O dia apresentou-se prazeroso. O
sol ilumina alto toda a existência material e imaterial. Bordado a nuvens
suaves, pinceladas adelgaçadas borrifam o firmamento finito de cobre na intermitente
rotação planetária. As ruas almejadas da algazarra taciturna numa ordem
escanzelada, palpitam de vegetação verde e flores violetas, amarelas, brancas e
lilases em retângulos regulares, desconstruídos pela exuberância das cores
cultivadas e tratadas por quem sabe. Em sentido, Marta olha o céu, enclaustra
os olhos permitindo-se apanhar os raios solares, as cores, a vida contígua ao
seu ser. Sente, neste ato, a libertação enclausurada dos afetos majestosos que
sufocam a eternidade dos seus dias.
Assombra-lhe a tristeza de não ter
solução; e ignorando a verdadeira libertação, sem julgamento possível da razão
indolente de quem foi educado para agir de coração aberto pela aceitação dos de
mais, desposando de si e da sua paixão interior por si e da carência real de
provisão de seus afetos.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Agradecemos a sua disponibilidade para comentar. Por favor sorria!